A combinação de uma legislação rígida e práticas sustentáveis já conhecidas favorece a trajetória da produção brasileira para uma realidade de baixa emissão de carbono, inclusão social e viabilidade econômica. No entanto, além do cumprimento efetivo da lei, o país tem que ampliar os investimentos em sistemas agroflorestais, recuperação de áreas degradadas e energias renováveis.
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Para Thais Ferraz, diretora programática do Instituto Clima e Sociedade (iCS), é possível conciliar agenda climática, biodiversidade e agronegócio. Bióloga e professora de sustentabilidade, ela tem mais de 15 anos de experiência na área, somando passagens pelo Instituto Arapyaú e pela Natura. À Globo Rural, Thais falou sobre a evolução global na transição climática e as contribuições e os desafios do agronegócio nesse cenário de tantas mudanças.
Globo Rural - É possível conciliar agenda climática, biodiversidade e agronegócio?
Thais Ferraz - Com certeza. O primeiro passo é cumprir a legislação ambiental, mantendo as áreas de floresta que são apontadas para cada um dos biomas. Um estudo recente fez um cruzamento entre o regime de chuvas da Amazônia e a chuva em outros lugares do país. São os chamados rios voadores. Esse estudo mostra que a manutenção de terras indígenas, que são áreas preservadas de floresta, diminui o risco de ter menos chuva nas áreas do agronegócio. Outro passo importante é desenvolver metodologias de mensuração de sequestro de carbono.
As metodologias atuais não são adequadas à agricultura tropical. O governo está desenvolvendo uma plataforma chamada Agromais. É muito importante que essa iniciativa evolua e seja o principal meio de monitoramento de todas essas práticas.
GR - Os extremos climáticos podem comprometer de forma drástica a produção agropecuária?
Thais - Segundo o MapBiomas Água, 76% dos municípios do Cerrado terão uma redução de 30% a 40% no volume de chuvas se tivermos um aumento de 3 °C na temperatura média. Nos últimos dois anos, nós tivemos um aumento global de quase 1,5 °C.
Esse aumento médio afeta as regiões de maneira diferente, com elevação da temperatura e mais seca na Amazônia e no Cerrado e mais chuva no Sul. Isso é preocupante porque, com a intensificação, no limite, nós teremos no Brasil algumas áreas que não serão mais produtivas, já que elas vão ficar muito secas e quentes.
GR - Que medidas podem ajudar a limitar esse aumento de temperatura?
Thais - É muito importante que os produtores adotem práticas mais sustentáveis, além do plantio de florestas. A integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF) tem vários resultados de ganhos de produtividade, bem-estar animal e saúde do solo. Temos os sistemas agroflorestais, modelos também bastante adequados para agricultores familiares, porque tornam possível a diversificação de renda e a manutenção de biodiversidade e demandam menos insumos químicos.
O ideal é que o governo aumente o percentual de recursos do Plano Safra para linhas de produção mais sustentáveis. Tem ainda a transição dos combustíveis fósseis para energias renováveis. O Brasil tem uma vantagem, porque já tem uma matriz energética com percentual alto de energias renováveis.
Um efeito interessante, mas cruel, é que com as secas fica mais difícil a geração de energia hidrelétrica, e o país acaba acionando as termelétricas, que emitem muito mais carbono. Então, a gente precisa realmente garantir que continuará tendo um alto percentual de energia renovável e limpa na matriz energética.
GR - Como tem sido a evolução do agronegócio nos esforços para a descarbonização do planeta?
Thais - No caso do Brasil, 48% das emissões de gases de efeito estufa vêm do desmatamento e 27% da agropecuária. Existe uma oportunidade de reduzir emissões cumprindo a lei. O Código Florestal é uma das melhores leis ambientais do mundo. É cumprir a lei e fazer a documentação que confirma esse cumprimento. Na agropecuária também existem muitas técnicas que já vêm sendo implementadas: a pecuária com boas práticas, mais intensiva, que usa menos área, a rotação de pastagem, o plantio direto, a ILPF. E existe ainda uma oportunidade muito grande que é a conversão das pastagens degradadas. O Brasil tem quase 40 milhões de hectares de pastagens com algum nível de degradação e potencial para conversão. Só com a recuperação dessas áreas, a gente tem um potencial de sequestro de 41,69 milhões de toneladas de CO₂.
GR - A decisão de alguns estados, como Mato Grosso, de mudar a legislação para desmotivar a adesão à Moratória da Soja compromete esse quadro?
Thais - O ponto mais crítico para o Brasil é realmente o desmatamento. O fato de o país ter demonstrado redução de desmatamento já traz resultados muito concretos. Com a redução do desmatamento, o Fundo Amazônia recebeu R$ 643 milhões em doações de países como Noruega, Estados Unidos, Alemanha e Japão. O fundo lançou recentemente um edital com o BNDES para investir em restauração. A grande questão para o agro é o setor se posicionar como um movimento responsável também por essa lei ambiental. Eu acho que deve haver um posicionamento dizendo ‘sim, a gente cumpre a legislação’, em vez de o país sair de compromissos que já assumiu e que são reconhecidos globalmente. Isso é visto como um retrocesso.
GR - No cenário atual, é possível gerar renda com o plantio de florestas?
Thais - A agrofloresta tem viabilidade econômica, e a gente já vê alguns casos que são muito bons para o produtor, principalmente modelos que trabalham com cacau. Existe também plantação de floresta para exploração de madeira, que gera créditos de carbono e madeira para móveis. É sempre essa combinação que se precisa olhar, de impacto de carbono, inclusão social e viabilidade econômica. É importante observar que o Brasil tem meta de restaurar 12 milhões de hectares de florestas até 2030, com potencial de criação de mais de 5 milhões de empregos e uma geração de R$ 776 bilhões em receita, além da remoção de 4,3 bilhões de toneladas de CO₂ da atmosfera.
GR - Um dos principais resultados da COP29 foi o compromisso que os países desenvolvidos assumiram de destinar US$ 300 bilhões por ano, até 2035, para ajudar países vulneráveis a enfrentar os impactos das mudanças climáticas. Podemos considerar que foi um avanço?
Thais - O principal objetivo da COP29 era rediscutir a meta de financiamento climático acertada no Acordo de Paris, de US$ 100 bilhões ao ano, que os países desenvolvidos têm que investir nos países vulneráveis para apoiar a transição climática. Foi muito difícil chegar a um acordo. O que se apontou como ideal era US$ 1,3 trilhão, mas chegou-se a US$ 300 bilhões, com o compromisso de definir uma rota para atingir US$ 1,3 trilhão. E o histórico mostra que muitas vezes não atingimos US$ 100 bilhões por ano. Deveríamos evoluir e ter algo mais concreto na COP30, em Belém. Precisamos de muito mais ambição para conseguir cumprir a meta de limitar o aumento da temperatura média em 1,5 °C.
GR - Como a falta de financiamento adequado afeta países vulneráveis?
Thais - Há uma dificuldade de acesso aos fundos que foram criados para a alocação desses recursos, como o Fundo Verde para o Clima (Green Climate Fund, ou GCF) e o Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF). Muitas vezes, os critérios de acesso a esses recursos estão desalinhados da realidade dos países vulneráveis. Uma das questões discutidas é uma recomendação do G20 de rever os critérios e a governança desses fundos.
Também é necessário combinar fundos totalmente dedicados à agenda do clima e os recursos de bancos multilaterais para apoiar a transição climática. Um exemplo superconcreto do agro é o Plano Safra, que vem aumentando gradativamente o percentual que destina a práticas mais sustentáveis.
GR - Qual deve ser o principal foco da COP30, que acontece em novembro?
Thais - A implementação deve ser o grande mote da COP30. Isso significa que alguns temas vão precisar de mais detalhamento, como adaptação, transição justa, financiamento e transitioning away (transição de combustíveis fósseis para renováveis). Um exemplo: houve acordo na COP29 sobre a destinação de US$ 300 bilhões, mas é preciso definir agendas específicas e ter uma rota clara para se chegar a US$ 1,3 trilhão. E (a de Belém) é a COP das pessoas. Precisamos de soluções para o clima que levem em consideração também as questões sociais.
GR - Consolidação do mercado de carbono e bioeconomia também são temas prioritários?
Thais - Sim. Bioeconomia entrou na declaração do G20, e o Ministério do Meio Ambiente também lançou um plano. O mercado de carbono teve um passo importante em relação à regulamentação e é um indutor para várias atividades da bioeconomia. O mercado de carbono pode gerar receita adicional para vários desses modelos e balancear um pouco essa transição.
GR - Na COP29, o Brasil definiu nova meta climática com a NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada), para limitar o aquecimento do clima em 1,5ºC. Como você avalia a decisão?
Thais - O Brasil não propõe um valor absoluto, e sim uma faixa de redução, com mínimo e máximo. É muito relevante que a discussão avance para que a gente tenha exemplos concretos para levar para a COP30. Temos a expectativa de que as consultas desse plano de implementação aconteçam no primeiro semestre do próximo ano.
As consultas setoriais serão super-relevantes para definir a meta de cada segmento, seu plano de investimento e de onde sairão os recursos. A NDC é importante para dar o norte, mas o Plano Clima é que detalha como será a implementação disso.
GR - Quais os riscos da falta de detalhamento do Plano Clima?
Thais - O maior risco é ter uma meta que não vai ser implementada. É muito importante que, além do Plano Clima, as outras políticas setoriais estejam alinhadas com a agenda climática. E aí é uma combinação entre políticas e investimentos, quanto custa para essa agenda ser adotada, quais recursos são necessários atrair, que tipo de recurso se vai usar.
GR - A bioeconomia entra nesse contexto?
Thais - A bioeconomia é uma agenda que deve ter força na COP30. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, por exemplo, lançou recentemente a Coalizão Brasil para o Financiamento da Restauração e da Bioeconomia, com a ambição de mobilizar US$ 10 bilhões para apoiar projetos que visem à conservação e à restauração de pelo menos 5 milhões de hectares de florestas no Brasil. E US$ 500 milhões serão direcionados para comunidades indígenas e comunidades locais na Amazônia.
GR - Quais são os desafios para se fazer a transição justa?
Thais - Precisamos garantir que os custos sejam acessíveis. Isso envolve políticas estruturantes, como direcionar subsídios, onde incentivar. É um arcabouço mais complexo, mas absolutamente crucial. Um exemplo é a questão do combustível sustentável de aviação (SAF). Já se sabe que algumas alternativas tecnicamente viáveis têm custo muito mais alto. O mercado de créditos de carbono é uma tentativa para ajudar a fazer essa transição, que não é simples.